sábado, 26 de abril de 2014

BANANA DA TERRA!

(Texto originalmente publicado no catálogo da Mostra Curta Circuito 2014: http://www.curtacircuito.com.br/programacao/belo-horizonte/)

Imperial e as lebres Rose Di Primo e Kate Lyra no traço inconfundível de Benício

Natal de 1971: Stanley Kubrick assombrava o mundo com o explosivo Laranja mecânica (A clockwork orange, Inglaterra/EUA, 1971), adaptação do livro homônimo de Anthony Burgess. Mais atual que nunca, a história de Alex e seus amigos, uma gangue de estupradores e assassinos, se passava num futuro em que a violência do Estado contra o indivíduo era mais chocante que a praticada pelos delinquentes.

Brasil, 1972: o país vivia sob uma ditadura militar e a repressão política, comandada pelo então presidente, general Emílio Garrastazu Médici, atingia seu extremo. Os direitos dos cidadãos eram cerceados pelo infame Ato Institucional n° 5 (AI-5). Quem definia o que os brasileiros podiam ver, ouvir e ler eram os técnicos da DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), ligada à Polícia Federal. Nos cinemas, na contramão da severa censura de costumes, as pornochanchadas, comédias que misturavam ingenuidade e alguma malícia – “os dilemas do dar e do comer”, como definiu o pesquisador Nuno Cesar Abreu – caíam nas graças dos espectadores. Inspiradas nas produções italianas – especialmente as estreladas pelo astro do gênero Lando Buzzanca, como Um siciliano na Dinamarca (Il vichingo venuto dal sud, Itália, 1971), de Steno e O supermacho (Homo Eroticus, Itália/França, 1971), de Marco Vicario - e impulsionadas pelo êxito de Os paqueras (RJ, 1969), de Reginaldo Faria e Adultério à brasileira (SP, 1969) e A viúva virgem (RJ, 1972), ambos de Pedro Carlos Rovai, tiveram no Beco do Cinema, no Rio de Janeiro e, principalmente, na Boca do Lixo, em São Paulo, seus dois maiores polos produtores.

Laranja mecânica nunca foi oficialmente proibido pela DCDP. Após exibição prévia para autoridades do governo em uma das famosas “cabines” do Palácio do Planalto, a distribuidora Warner foi avisada de que o filme seria integralmente vetado caso submetido à apreciação dos censores. O longa só seria lançado nos cinemas brasileiros seis anos depois, em 1978, acompanhado de ridículas bolinhas pretas que saltitavam na tela na tentativa de cobrir paus e xoxotas. Mesmo inédito, virou hit. O nome Laranja mecânica caiu na boca do brasileiro e serviria até de apelido para o escrete holandês na Copa do Mundo de 1974.

Corte rápido.

O “rei da pilantragem” Carlos Imperial (1935-1992) era multimídia antes mesmo de o termo existir. O “Gordo”, como era carinhosamente conhecido - “com mais de 100 quilos de peso, posso ser visto a olho nu, sem o auxílio de microscópio” -, marcava presença na vida cultural carioca desde a década anterior com programas de TV, filmes, colunas de jornais e revistas, peças de teatro e shows musicais. Compunha - Vem quente que eu estou fervendo e A praça são de sua autoria -, apresentava, escrevia, produzia, dirigia, atuava e não fugia de uma boa polêmica. Depois de Um edifício chamado 200 (RJ, 1974), sua estreia na direção cinematográfica, Imperial já havia anunciado o próximo projeto da CIPAL (Carlos Imperial Produções Artísticas Ltda.), a pornochanchada Como abater uma lebre - termo empregado por Carlos em sua coluna no jornal Última Hora (RJ) para denominar a figura feminina. Com a crescente curiosidade do povão em torno do “proibidão” de Kubrick, o Gordo, sempre oportunista, decidiu trocar o título da empreitada. A lebre virou fruta. Nascia A banana mecânica (RJ, 1974).

No roteiro, um veículo para o astro-produtor escrito a oito mãos pelo próprio, os primos Braz e Jesus Chediak e Sindoval Aguiar, Imperial é o Dr. Ferrão, um renomado psicanalista especializado em lebres que resolve os problemas de suas pacientes na cama.  Não poupa sequer a tia de sua noivinha, a virginal Cristina (a musa Rose Di Primo), a única que, para seu desespero, resiste ao charme do Gordo (que, aos 39 anos de idade, era um misto de Orson Welles e Buda). Para abater a lebre antes do casamento, Ferrão bola uma técnica revolucionária: a “sex surprise”. O máximo que consegue, no entanto, deixaria o lamentável pastor Marcos Feliciano com inveja: a “cura” de seu paciente gay, Paulo Frederico (Miguel Carrano).

Insatisfeito com o resultado de Um edifício chamado 200, que traía suas origens teatrais –baseava-se na peça homônima de Paulo Pontes –, Imperial espertamente botou a Banana na mão do cineasta mineiro Braz Chediak. Vindo do sucesso de Os mansos (RJ, 1973), no qual dirigiu o imortal Paulo Coelho no episódio O homem de quatro chifres, Chediak deu ritmo e leveza ao filme, e certamente ensinou um pouco de sua mise-en-scène ao Gordo, o que é facilmente verificável em produções posteriores como O sexomaníaco (RJ, 1976) e Delícias do sexo (RJ, 1980). A fotografia em cores quentes do veterano Hélio Silva – de Rio, 40 graus (RJ, 1955) e Rio, zona norte (RJ, 1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos – é parte fundamental do apelo de Banana mecânica. Silva sabia extrair o máximo com o mínimo de recursos, e deu ao longa um apuro visual surpreendente para o (baixo) orçamento injetado por Imperial.

Cartaz do relançamento de O SEXO DAS BONECAS, o filme da cenoura, dirigido por Imperial. Acervo Fábio Vellozo

Mário Gomes em O SEXO DAS BONECAS. Lobby card. Acervo Fábio Vellozo

No elenco de apoio, caras conhecidas da TV e da pornochanchada carioca como Felipe Carone (Cornélio), Mário Petraglia (Carlitos) e Ary Fontoura (o detetive que tem fetiche por sutiãs), além de um time de lebres para ninguém botar defeito e de participações especiais impagáveis de Henriqueta Brieba e Pedrinho Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”.

Como a maioria das pornochanchadas – que de pornográficas não tinham nada -, A banana mecânica foi amassada pelos críticos, que rechaçavam fortemente o “produto não politizado”. Era a época das “patrulhas ideológicas”, termo cunhado pela crítica Pola Vartuck, mas atribuído ao cineasta Cacá Diegues. O público, no entanto, gostou da fruta. Lançado no Rio de Janeiro em outubro de 1974 em oito salas, o filme faria, em números oficiais, 1.157.590 espectadores. Apesar de mostrar apenas meia dúzia de peitinhos, a DCDP não quis saber de conversa e exigiu a proibição para menores de 18 anos de idade.

É difícil imaginar quantos foram aos cinemas atraídos apenas pelo título matador, que nada tem a ver com o filme – afinal, a paródia com o “original” inglês nasce e morre na mudança das frutas e nos créditos de abertura, com a banana desenhada pelo cartunista Mixel Gantus. Mas, certamente, ninguém se sentiu enganado: A banana mecânica é perfeito enquanto síntese das intenções do Gordo e da eternamente “maldita” pornochanchada. Quem pagou o ingresso, sabia que estava entrando no terreno do deboche, da irreverência e da malícia. Sorrisos ao fim da sessão?  Esses são fáceis de imaginar.